15 maio 2010

Amor de Roleta (2/3)

No capítulo anterior (leia antes o post Amor de Roleta (1/3):

(...) essas vidas não dariam a extensão de um conto.

.......................................................................................

mas a sexta-feira que se seguiu merece alguma atenção (...)
CONTINUA (...)




mas a sexta-feira que se seguiu merece alguma atenção. ELA entrou no ônibus religiosamente no mesmo horário. No entanto, enquanto girava a roleta - O TROCADOR com os olhos fixos no leitor de cartão à espera da luz verde -, ELA percebeu que o único lugar vago era justamente ao lado do TROCADOR. Sem escolhas, ali sentou. Como se já não bastasse, esse trajeto ainda reservaria mais um empurrão para a história dos dois.

um passageiro afoito chegou ofegante a perguntar se o trocador sabia aonde ficava determinada rua. Sem jeito, ele disse que não, perguntou ao motorista que tampouco conhecia. Angustiada, por saber a resposta, ELA, sentada ali bem diante da cena, ensaiava com pequenos movimentos de lábios mudos, a forma de se manifestar. Até que rompeu a resistente película de vergonha que impedia o ar de sair de sua garganta e dar voz a seus lábios:

- Fica no 2º ponto depois do shopping. Eu vou descer lá.

e sentiu sua traquéia enrijecer-se novamente ao ver que os dois homens a olhavam agradecidos. O passageiro disse uma, duas ou três palavras gentis e sumiu para o fundo do ônibus.

quando ELA olhou para ELE, este ainda a olhava. Não foi o que se pode chamar de um olhar longo, mas com certeza significativo. Isso porque essa situação de desconforto instaurada pelo passageiro, que já assobiava tranquilo lá no fundo do ônibus, fez com que os DOIS perdessem o compasso da dança ocular travada diariamente e, ao sair do ritmo, se encarassem a ponto de ELE notar algumas sardas no nariz dELA e ELA encontrar uma cicatriz logo abaixo do olho esquerdo dELE. Segundos depois, parece que o maestro bateu com sua baqueta no púlpito, chamando os músicos de volta a sinfonia e os dois, impelidos pela melodia, voltaram a dançar, buscando outra coisa para fixar o olhar que não fosse o olhar do outro.

os pensamentos dELE estavam girando a mil. ELE tinha de dizer algo agora, antes que o inverno entre os dois voltasse a cristalizar sua espessa barreira. Assim, ELE olhou novamente para ELA e disse:

- O shopping ficou bonito depois da reforma, não ficou?

assustada, não com a pergunta, mas com o fato de ELE perguntar - afinal, ELA nunca imaginou que ELE lhe diria algo -, respondeu com outra pergunta:

- O quê?

- Eu disse que o shopping tá bonito! - reafirmou ELE, já se torturando por dentro, condenado pela estupidez do assunto proposto.

só faltavam 3 pontos para ELA descer. Começou a pressionar o pé direito contra o chão como que em uma tentativa de acelerar o ônibus. Não porque havia considerado desagradável a aproximação, mas porque estava se sentindo uma estúpida por estar ali, sem reação, diante da situação que tanto esperou e para a qual se preparou infindáveis vezes diante do espelho. ELA, diante do seu duplo, arriscava um "Oi, meu nome é Dolores, eu sou atendente de telemarketing." e parava, com a certeza de que ELE não se interessaria em saber sobre sua ocupação. Precisava pensar em algo mais genuíno. ELA não entendia bem o que significava essa palavra, tinha ouvido na novela, mas sabia que era por algo assim que ELA procurava. Tentava então "Você viu o estrago que as chuvas de ontem fizeram na cidade?" E assim ELA já conversara consigo sobre o tempo, a violência, o trânsito, mas nunca sobre o shopping e sua reforma e, por isso estava ali se culpando por não ter uma resposta ensaiada. Disse então apenas um:

- Ah sim, está lindo! - e se sentiu surpresa por conseguir dizer ainda - Tenho que ir. Um bom dia pra você! - antes de levantar-se e ir para o fundo do ônibus esperar a hora de descer, sem tirar os olhos da porta sequer uma única vez.

quando a porta se abriu, desceu quase sem respeitar os degraus e, dessa vez, não ficou olhando o ônibus ir embora. Foi ELE que, sentado em seu posto com olhar à altura da janela, ficou olhando ELA ir embora. Até que um passageiro o chamou de volta a seus trocados e ELE contou algumas moedas.

....................................................................................

a história dELES nunca quis acontecer (...)
CONTINUA (...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário