12 maio 2010

A implosão de uma garrafa de champanhe

ACOLHIDO EM CUBOS DE GELO, aguardo ao lado de whiskeys, gins e tantos outros como eu, sonhando em ser o escolhido para explodir de comemoração e molhar os cabelos das mulheres que primeiro se afastam cuidadosas e logo depois se aproximam com suas taças desejosas. Desejosas as taças e as mulheres. E molhar o terno despreocupado dos homens que não se movimentam pra fugir da chuvarada de álcool borbulhante e seguram firmes suas taças desejosas. Desejosas as taças e os homens. E saciar assim o desejo, a busca por ele, a vontade de buscá-lo, despistando o pudor e o excesso de racionalidade. E reavivar o humor descuidado, o instinto desenfreado, o amor desmedido, o andar desalinhado, a intromissão distraída, a sem-vergonhice descabida, os dramas sem saída, a alegria momentânea, a entrega até o limite, o sono desmaiado.

ENQUANTO EU SONHO, os cubos de gelo derretem entusiasmados ao meu lado, me deixando ainda mais atraente ao toque gelado. A anfitriã mão desejosa se aproxima e eu provoco uma gota que escorre pelas minhas curvas pra chamar sua atenção. Não sei se pela gota ou por sorte mesmo, sou agarrado para o grande momento.

CADA PASSO QUE O DONO DA MÃO DÁ me revira por dentro pela natural conseqüência do movimento e pela ansiedade da contagem regressiva que começa entusiasmada logo em seguida. 10 – 9 – 8 – me concentro como um atleta antes da corrida para o salto em distância – 7 – 6 – 5 – sinto o peso decisivo desse salto, pois diferentemente do atleta eu só tenho uma chance de alcançar a distância recorde – 4 – 3 – 2 – sinto aquela ausência de sentidos que antecede o ápice – 1 – FEEE-LIIIII/ Acordo atrás do sofá ainda cheio e trajando minha indiferente rolha. Atordoado, tento me lembrar do que se passou e o último segundo que meu consciente me revela é a sensação do grito de “Doooois”. Depois disso, apenas me vem eu no chão atrás do sofá.

O QUE SE SEGUE é uma busca angustiada pela reconstituição da noite passada, juntando os fatos que ouço de garrafas vazias de whisky, gim... e champanhe, apesar de nelas eu não acreditar muito, pois era claro que na fala delas o ressentimento de não terem sido escolhidas anunciava o prazer em engordar minha angústia.

MAS A CERTEZA veio das mãos da empregada que, ao se ver sozinha no apartamento de cobertura, me carregou para a cozinha e, surpresa ao arremessar a rolha na parede em frente com a facilidade de um pressionar de polegar, chamou o chouffer e a cozinheira para beberem com ela a minha trágica perda da medalha de ouro tão certa e anunciada, ao tropeçar e cair de cara na areia. - FEEE-LIIIII... todos interromperam o grito de alívio e esperança da virada do ano para olharem incrédulos para o dono da festa se debatendo com a rolha que se recusava a sair, até que um amigo o salvou daquela embaraçosa cena lhe entregando outra garrafa que explodiu em suas mãos sem hesitação, enchendo as taças desejosas de todos.

SEM ACREDITAR NO QUE EU ACABARA DE OUVIR, eu fui sendo grosseiramente despejado em copos de requeijão. Nesse momento, eu entendi porque eu não lembrava de nada. Ao não conseguir arremessar a rolha, eu me implodi e tive de consumir sozinho, em um só gole, todo o fervor do meu álcool doce e borbulhante, borbulhas de expectativa, borbulhas de empenho, borbulhas de tudo que eu tinha pra dar. Eu estava pronto pra me esvair, doar tudo, me espalhar até a última gota e não consegui me fazer compreensível diante do outro. No momento de me mostrar ao mundo, eu não consegui sair de mim e desmaiei embriagado, em estado de choque, acordando só no dia seguinte com aquela sensação de ressaca moral e de aprisionamento.

ENQUANTO EU CAMINHAVA pelos corredores de minha carceragem e me perdia nos copos de segunda, os empregados celebravam o 1º dia do ano com uma alegria nada habitual. Como se encontrar aquela garrafa ainda cheia fosse um presente de Deus, recompensando-os pelo trabalho árduo e bem feito do ano anterior e anunciando um futuro melhor. E eles se olhavam, se reconheciam uns nos outros e em si mesmos, se sentiam pela primeira vez parte daquele lugar, peças importantes do jogo. E eles ligaram o rádio, dançaram, aproveitaram aquele momento até a minha última gota.

E FOI SÓ QUANDO EU ME VI VAZIO e vi os três ali curtindo provavelmente o melhor momento da vida deles que eu despertei do meu calvário egoísta e percebi a importância daquele acontecimento. Não era nada do que eu havia planejado, nem de longe o que eu havia sonhado pra mim, mas foi o que aconteceu, foi o que a vida me trouxe e foi grande. Tão grande que a dor da frustração da minha ingênua e incompleta forma de ver as coisas não me deixou enxergar de pronto. Eu me prendi tanto à decepção da não realização dos meus planos que não percebi que o que estava predestinado para mim não era ser servido a pessoas que já se acostumaram com champanhe como o são com a água e que provavelmente nem lembrariam mais do meu gosto no dia seguinte, mas sim ser rejeitado por elas, para ser eternizado em um momento único na vida desses três.

E, AO PERCEBER ISSO, CHOREI uma gota remanescente que acabou por manchar o tapete da sala onde eles estavam sentados, minutos antes da chave fazer barulho na fechadura e os três correrem aos risos pra cozinha.

(parido em 9 de abril de 2010)

2 comentários:

  1. Adorei o texto. Senti que o champanhe, após ser rejeitado pela Narcisa, quis dizer que "chique é ser simples".

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  2. Gente... Emocionante... Primeiro, um champanhe super sensual. Depois, se enche de expectativas para, antes da frustração aparecer, reconhecer seu verdadeiro sentido! Como você escreve bem, hein, marida? E é poética e metafórica ainda! Eita!

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